segunda-feira, 19 de março de 2007

o lúcifer da idade moderna...

Porque me revolta, porque me chateia, porque me indigna... porque há 'bois da beira' (perdoem-me a expressão) que simplificam tudo na premissa 'os portugueses não querem trabalhar!'... mentalidades, portanto!!
Em jeito de resposta deixo-lhes Pierre Bourdieu (1998).

«(...) Foi claramente exposto que hoje a precariedade está em toda a parte. No sector privado, mas também no sector público, que multiplicou as posições temporárias e 'a recibo', nas empresas industriais, mas também nas instituições de produção e difusão cultural, educação, jornalismo, meios de comunicação social, etc., com a precariedade produzindo efeitos sempre mais ou menos idênticos e que tornam particularmente visíveis no caso extremo dos desempregados: a desestruturação da existência, privada entre outras coisas das suas estruturas temporais, e a degradação de toda a relação com o mundo, com o tempo, com o espaço, que se lhe segue. A precariedade afecta profundamente aquele ou aquela que a sofre; tornando todo o futuro incerto, proíbe qualquer antecipação racional e, em particular, esse mínimo de esperança e de crença no futuro, que é necessário à revolta, sobretudo colectiva, contra o presenta, por mais intolerável que este seja.
(...) A precariedade nunca se deixa esquecer; está presente, a todo o momento, em todas as cabeças (excepto decerto nas dos economistas liberais, talvez pelo facto de, como observava um dos seus adversários teóricos, beneficiarem dessa espécie de proteccionismo representado pela 'tenência', posição de titulares que os arranca à insegurança...). Obsidia as consciências e os inconscientes. A existência de um importante exército de reserva, que já não se encontra apenas, dada a sobreprodução de diplomados, nos níveis mais baixos da competência e da qualificação técnica, contribui para fazer sentir a cada trabalhador que ele nada tem de insubstituível e que o seu trabalho, o seu emprego, é de certo modo um privilégio, e um privilégio frágil e ameaçado (...). A insegurança objectiva é a base da insegurança subjectiva generalizada que afecta hoje, no coração de uma economia altamente desenvolvida, o conjunto de trabalhadores (...). Esta espécie de 'mentalidade colectiva', (...) comum a toda a época, encontra-se no princípio da desmoralização e da desmobilização que se pode observar (...) em países subdesenvolvidos, castigados por taxas de desemprego ou de subemprego, muito elevadas e perseguidos permanentemente pelo medo do desemprego.
(...) Quando o desemprego, como hoje em numerosos países europeus, atinge taxas muito elevadas e a precariedade afecta uma parte muito importante da população (...) o trabalho torna-se uma coisa rara, desejável a qualquer preço, que põe os trabalhadores à mercê dos empregadores e estes, como podemos verificar todos os dias usam e abusam do poder que assim lhes é dado. A concorrência em torno do trabalho é redobrada assim por uma concorrência no trabalho, que continua a ser uma forma de concorrência em torno do trabalho, que é preciso conservar (...) contra a chantagem do despedimento Esta concorrência, por vezes tão selvagem como aquela a que as empresas se entregam, encontra-se no princípio de uma luta contra todos, que destrói todos os valores de solidariedade e de humanidade e, por vezes, assume uma violência sem disfarce.
(...) Assim a precariedade age directamente sobre aqueles que toca (....) e indirectamente sobre todos os outros, pelo medo que suscita e que é metodicamente explorado pelas estratégias de precarização, como a introdução da famosa 'flexibilidade' - cuja inspiração, bem entendido, remete tanto para razões políticas como económicas. Começamos assim a entrever que a precariedade é produto não de uma 'fatalidade económica', identificada com a famosa 'mundialização', mas de uma vontade política. A empresa 'flexível' explora de certo modo deliberadamente uma situação de insegurança que contribui para reforçar: procura baixar os seus custos, mas também tornar possível essa baixa pondo permanentemente o trabalhador em perigo de perder o seu trabalho. Todo o universo de produção, material e cultural, pública e privada é assim arrastado por um vasto processo de precarização, associado por exemplo, à desterritorialização da empresa (...).
Ao facilitar-se ou organizar-se a mobilidade do capital, e a 'deslocalização' para os países com salários mais baixos, onde o custo do trabalho é mais fraco, favoreceu-se a extensão à escala mundial da concorrência entre os trabalhadores (...).
A precariedade inscreve-se num modo de dominação de tipo novo, baseado na instituição de um estado generalizado e permanente de insegurança visando coagir os trabalhadores à submissão, à aceitação da exploração. Para caracterizar este modo de dominação (...) houve aqui alguém que propôs o conceito, ao mesmo tempo muito pertinente e muito expressivo, de flexploração. o termo evoca muito bem essa gestão racional de insegurança.
(...) Contra tal regime político, a luta politica é possível. Pode dar-se em primeiro lugar como fim, como a acção caritativa ou caritativa-militante, encorajar as vitimas da exploração, todos os precários actuais e potenciais, a trabalharem em comum contra os efeitos desestruturadores da precariedade (...), e sobretudo a mobilizarem-se, à escala internacional (...).
Para que o sistema económico funcione, é preciso que os trabalhadores nele introduzam as suas próprias condições de produção e de reprodução, mas também as condições de funcionamento económico, a começar pela sua crença na empresa, no trabalho, na necessidade do trabalho, etc.»

(Pierre Bourdieu, 1998, Contrafogos, pp.113-120, Edições Celta)

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