segunda-feira, 30 de outubro de 2006

"O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa - de uma pessoa que seja - atrasa-me de imediato o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é que esta palavra composta é viável pela linguagem. Sou capaz, a sós comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas tudo isso se me some se estou perante um outrem físico, perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de horas, sinto apenas sono. Sim, falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e imaginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num espelho.
Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contacto com outrem. Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de definir. A ideia de uma obrigação social qualquer - ir a um enterro, tratar junto de alguém de uma coisa no escritório, ir esperar à estação uma pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida -, só essa ideia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender.
«Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens»; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie - não poderei talvez dizer da minha raça."

Bernardo Soares, in "Livro do Desassossego"

domingo, 22 de outubro de 2006

uma oração

El Shadday,
na felicidade e no tormento És a minha paz e em Ti confio.

Dam Bo (Sara Tavares, Balancé)
'Dá-me o que tens de Ti, Tu que tens o poder de serenar e alimentar a minha alma. Dá-me o que tens de Ti, Tu que me iluminas e matas a minha sede. Não quero estar só.'

sábado, 21 de outubro de 2006

'til the clouds clear


(just click the link & you'll find out)

[para os mais distraidos: lamb , "'til the clouds clear"]

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

o hoje e o sofá azul

Blue couch
Pastel drawing by artist Miles Williams Mathis, Bruges, Belgium

As paredes do meu castelo estão caiadas pela ausência e as noites, agora longas, tornaram-se mais frias que nunca. Pela janela do olhar tento atenuar a solidão taciturna com pequenos monólogos mentais. Murmúrios íntimos de paisagens tranquilas que vivem em mim, a doce brisa que acaricia o momento perfeito de cada pôr-do-sol com que sou celestialmente abençoada.
Nesta imensidão de cores e ternura faço do mar a minha voz e do resplendor o brilho infinito com que teço o vagaroso dos meus dias. Caminho descalça pela areia, a sua textura rugosa afaga-me a alma e renova-me o alento. Na mão carrego apenas um livro com que tento apagar as minhas memórias construindo outras, através das estórias que descubro a cada página. É impossível bem sei, mas gosto de pensar que sim, que posso traçar, num simples gesto, a fantasia de um qualquer lirismo inocente. E sorrio.
Prossigo caminho antevendo a paz na enormidade do fim de tarde. Como se fosse necessário manter-me acordada, molho a face só pelo simples prazer de sentir deslizar o salgado pelos meus lábios agora agridoces. Fecho os olhos e levanto os braços ao céu. Num movimento rápido e circular deixo-me embalar pela brisa dançando a um ritmo que apenas eu conheço, que apenas eu sinto. O ritmo de quem ama deveras as palavras do silêncio e os momentos perfeitos da simplicidade onde, concluo, não há solidão, onde não há ausência… apenas o agora eterno.
As dores começam a sanar. A minha fortaleza começa a ganhar cor, tonalidades quentes que apagam o vazio e trazem consigo gentes, diálogos e partilhas…
- “E o sofá azul?!” perguntas-me.
Respondo-te apenas: “- Está comigo, no meu coração, no imenso que guardo em mim, as memórias retalhadas que tanto me magoaram um dia, o dia em que parti para nunca mais voltar... Quanto ao demais, deixa hoje ser o hoje...”.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

letting go.

Hoje impera o silêncio.
Caminho face a um destino cujo mapa desconheço. Persigo o som, essa estranha e quase insana melodia que parece gritar-me nas entranhas. Já não estás para aparar-me quando cair e magoar os joelhos da alma. Por isso te guardo...
Guardo-te no meu baú de recordações, em que as memórias são como fotografias tridimensionais cheias de cor e movimento. Nele não há distância ou tempo, apenas reflexos, resquícios do outrora onde te tornas a ausência presente.
Entre um sorriso disfarçado e a lágrima que teima em cair, cristalizam-se em mim um turbilhão de emoções que parecem não querer abandonar-me, nem no momento em que o meu corpo descansa num sono profundo. E sonho.
Sonho que não te deixei partir, ouço o teu sorriso e olho os teus olhos. Esses olhos que um dia tranquilamente tocaram os meus. Estás tão perto que consigo sentir-te bem aconchegado a mim no sofá azul. A tua mão acaricia-me o cabelo num gesto simples e perfeito e sorrio de forma inigualável. Tornaste-te a paz brilhante.
Acordo. Tudo não passou de uma doce reminiscência da tua essência, a saudade incontrolável que não se despede e perdura.
‘Amar-te’ foi libertar-te de mim. Deixar-te voar esplendoroso rumo a um caminho que só tu conheces, junto daqueles que escolheste amar.
‘Amar-te’ foi dar-te ao mundo sem resignação, desejar-te feliz... e partir para nunca mais voltar.
'Amar-te é'...